V
( em Latim )
Uma tromba d’água elefantina não na graciosidade mas no volume varre a cidade, e recebe-me o acordar cansado. Café com leite e o verde leitoso das sete da manhã no jardim bem cuidado, que por mim falo. E fi-lo. Quando comecei, há já dez anos, era um quintal. Agora é um jardim de uma geografia íntima mas transmissível, pelo menos aos pássaros, a que agrada, às abelhas, às vespas e a umas coisas brancas que adoram a laranjeira. Eu as pedras a terra o verde e as coisas que nele se criam. E o cheiro doce da madressilva, que preenche tudo ainda mais com chuva. As flores em cachos amarelos e brancos são infância e estão aqui porque eu soube amadurecer com elas. Á tarde, depois da varredela da praxe, sentei-me eu o cigarro e um bicho-de-conta, taratritineto dos que me serviam de berlinde na crueldade de tantas vidas atrás. Este sítio é meu, e eu. E no entanto, é apenas um sítio. Bem cuidado. Será que o ramo mais alto da árvore-da-borracha ainda sabe da raiz? E se sabe, cuida?
Diálogo
Você gosta muito de si. Sim, sou a minha pessoa favorita. Vê-se. E nota-se. E você, gosta de mim? Não especialmente. Então abordou-me só para me desgostar? Sim. Bom; isso é bom. Bom? Sim; bom. Porquê? Porque começou o diálogo; e dialogar é bom. Eu gosto de mim; Você não. Duas opiniões; um encontro; uma nova maneira de ver? Sim; é bom. E modifica. Acho que já gosto um pouco mais de si. E do diálogo? Sempre gostei. De mim? Não; de si, de princípio não gostava.
Interlúdio Romântico
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De Salão
Algum canto se quebrou
Algum meio foi dobrado
Agora é sempre a descer
Agora é já noutro lado
Dança a dança tola
A correcta dança
Passo é só medido
Rigor de balança
Eu não sou assim
Quando danço agarrado
Eu danço em ti
E não amarrado
Algum canto se quebrou
Algum meio foi dobrado
Agora é sempre a descer
Agora é já noutro lado
Dança pelo metro
Onde não cabe a alma
Eu danço com outra
Deslumbrada calma
Eu não sou assim
Medido a rigor
Eu danço pelas léguas
Ai do meu amor
Algum canto se quebrou
Algum meio foi dobrado
Agora é sempre a descer
Agora é já doutro lado
Fim D’hoje
A atípica chuva, o mesmo mar, a bicicleta; começou a época balnear. Na terça fim do dia na praia, e a redonda onda a ralhar-me mansa uma longa ausência. Leio Eduardo Lourenço, um livro que descobri em Angra, com o curioso título de Tempo e Poesia. Ele há coisas. Ensaios, este sobre, curiosamente, Vitorino Nemésio. Que é da minha infância, gesticulando no preto e branco da oscilante TV. Se bem me lembro. E as voltas da vida, e as rodas da bicla, e o rolar do seixo. E a poesia, e o tempo.
Adenda
Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, Gradiva, 2003
Adenda 2
“Sob o pavimento está a praia” Grito de Maio, em Francês no original, Paris, il y a 40 ans