Outro Tempo

Porque às vezes mais não é suficiente

sexta-feira, março 30, 2007

 
18º.
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Escrever é em mim, mais que um acto reflectido, um acto reflexo. Reflexo de mim, do meu mundo, do que vi, do que ouvi; reflexo também porque automático, imediato, não sujeito a elaboração, mas instantâneo. Quando escrevo, releio, mas é raro corrigir. O que dá origem a muita asneira, mas é para isso que escrevo. Normalmente, a asneira previamente escrita não é posteriormente dita; a não ser que eu não a sinta como disparate, o que é raro; sou perspicaz.
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Antes de escrever para o mundo, escrevia para mim. Agora, a consciência de que serei lido mudou, não o que escrevo, mas a forma. Prefiro o curto, o sucinto. Poema, quinze centímetros; prosa, vinte centímetros. Mais que isso obriga a usar o rato, e é chato. Não gosto do chato. Do aborrecido ainda gosto, porque já dá trabalho dizer aborrecido, mas chato é tão automático que é mesmo chato. O aborrecimento requer elaboração intelectual. E é por isso que escrevo. Curto. E curto.
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Há no encadear da palavra, na construção da frase, no edificar do paragrafo uma busca de complexidade que o falar não permite. A oratória, a eloquência, o derramar discursivo buscam servir o argumento, e são por isso condicionadas a um marketing, um cativar audiências, que as torna redondas. Já quando se escreve, pode-se gozar da liberdade incondicional de fazer. E fazer é juntar coisas para produzir coisas maiores. O que aqui não posso, porque seria chato.
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15 cm.
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A extensão do verso ( eléctrica? )
Mede a ideia pura ( e simples? )
Efeito perverso ( kinky? )
Ou mera armadura
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Escrever com o comprimento largo do peso do ditongo ( longo? )
Torna a digestão do conceito fácil tão vasta como do árduo?
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Eu não sei medir o decassílabo
Perco as vogais a contar p'los dedos
Mastigar, corromper o vocábulo
É para mim o mesmo que gritar aos medos ( ineficaz )
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Quinze centímetros a lonjura do olhar
Quinze centímetros o metro da alma
Quinze centímetros medida de amar
Quinze centímetros o total da palma
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Rectificação
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Acima disse que fazer é juntar coisas. Também pode ser separar coisas. Juntando criamos maior, separando ocupamos mais espaço. O que aqui iria dar ao mesmo. A consciência do espaço do ecrã, do que é possível transmitir à primeira, é uma habilidade, uma arte ou uma ciência? Quantos dentre nós se preocupam com isso, com o impacto imediato da abertura da página no Visor? ( aquele que lê/vê Blogs )
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Visor
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Somos diferentes dos leitores de antigamente, embora a maior parte de nós leia ainda. Ganhámos uma apetência pelo deleite visual associado a um conteúdo programático. Elaborando: o Visor gosta da aparência ( não forçosamente do belo, do formoso, mas do aspecto puramente gráfico da página ) e pode-se contentar com isso. Mas normalmente o texto ( não forçosamente de recorte literário, ou até escrito de forma apenas competente ) ocupa um lugar igual. Um mau aspecto geral faz o Visor afastar-se, mas maus textos também. Demora é mais tempo. Eu sou um visor, o que para aqui pode considerar-se uma sub-espécie de Bloguer. Haverá outras, como o Fotor, o Sontor, o Traçor. Lá iremos se houver tempo e pa(ciência).
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Interlúdio Romântico
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Dois poemas
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I
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De rimas te faço espera
Ânsias moldo com teu nome
Sinto o peito como esfera
Sem esquina a que me agarre
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És de pedra magnética
Talhada a bisel de mim
Puxas-me vórtice negro
Por estas águas sem fim
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Piloto já sem timão
Capitão já não comando
Horizonte apenas tu
Minha vontade é teu mando
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II
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Agora que faço das palavras oficina
De um artesanato imaterial de som
Agora que construo em rima nada
Só bordados de tinta negra
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Faltas-me tu que eu queria modelar
Vestir de versos e tons
Fazer minha nos rebolares da língua
Que transcrevo aqui
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Agora vou pintar a natureza morta
Em tons de cinza e luto
Agora vou esperar como antes
Alguém que me faça desenhar
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De letras uma vontade de ser
Mais do que fui ontem
Mais do que fui hoje
Mais do que tinta e som
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Glossário
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Visor – ver acima
Fotor – é mais fotografia
Sontor – é mais música
Traçor – é mais traço ( eu também sou um bocadinho deste )
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Sumário
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Tive uma vez uma uma professora que insistia que os sumários deviam vir no fim da aula. Sumário = Sumula = Soma = A fim da conta = A fim da aula. Achávamos que ela era freak. Hoje dou-lhe inteira razão. Serei um freak?
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Fim D'hoje
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Escrever-me é-me impossível. Não me conheço todo. E eu odeio colecções incompletas. Falar de mim é fácil, já muita gente falou de mim. E para isso não há necessidade de totalidades. A consumação implica um falecimento de procedimentos, não o encerramento do processo. Mas hoje, na entropia da semana, não me apetece elaborar. Elaborai vós, pois, senhores, e até.
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Adenda
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Depois de Amanhã é tão longe como Anteontem, ou o intervalo entre os dias mede-se em esperanças?

quarta-feira, março 28, 2007

 
17º.

A pausa como passo, o intervalo como acto entre actos, a janela fachada fechada ou aberta marcando, ritmando. O entre. O entretanto, o intermédio, o entrevisto. O ruidoso silêncio. O ruinoso barulho. O som como edificado, a falta dele como parábola campestre. O ensurdecedor bosque, a calma esplanada bordejando o boulevard com vista para escape e motor. A cegueira como calma. A surdez como loucura. O terceiro lado da moeda. A esquina que persigna quem não sabe o que a sucede. O entreposto, o posto, o susto. O medo. A covardia. O ousar o outro, o amar o diferente, o igualizar. O escrever sem sentido o verso das coisas, porque as coisas não têm versos, são versejáveis. A amplidão como falta de opção. A liberdade como mito. O Eu.
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Nada mau como programa literário.
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Estou a reler Hermann Hess. O jogo das contas de Vidro. Segue-se Sidarta. Ando a meditar. Não ando a escrever. Não sei, a vida pediu-me uma marcha-atrás, e eu fiz-lhe a vontade. A seguir vou voltar a Faulkner, depois não sei. Talvez Steinbeck. Ainda não sei. Mas definitivamente para trás.
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Não porque sim
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Atravesso o espaço meu
Desconstruído
A memória de um viver
Definitivo
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No espaço arqueológico
Da minha lógica
Cavar é minha busca
Escatológica
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Autopsiar-me vivo
Crente
Procurar neste passado
O mim presente
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Ai eu
Ai de mim
Ai sim
Não porque sim
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Atravesso o espaço meu
Definitivo
Alicerce base e estaca
Do eu que sou
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Ai memória o que é viver?
Desconstruído
Na ruína que não fiz
Mas é presente
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Ai eu
Ai de mim
Ai sim
Não porque sim
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Interlúdio Romântico

Amor de Nós
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Dos vários tipos de amor gosto do furtivo e incompleto amor que ainda está por se exprimir, dos olhares trocados como moedas velhas de que se tem algum nojo, dos suspiros inaudíveis que se creem trespassar paredes, dos ais e uis do que será o amor de nós; gosto de esperar a primeira palavra, do primeiro olhar de franco desejo, daquela frase do Vanila Skyes pleasure delayer ( perdoa-me Penelope ) do saber que se quer e mutuamente ainda por cima e não fazer nada porque sofrer assim é bom. Gosto francamente da espera que nos evita os nãos e as responsabilidades dos sins sobretudo, se ela nos ama e não nos diz e se nós a amamos e nada dizemos e os Se todos que servem de alicerce ao futuro do amor de nós. Por exemplo amo agora uma menina que me perdoe se é senhora que eu francamente não sei, e é assim um ping-pong errático quando nos cruzamos dos tais olhares dos tais suspiros que de invisíveis rebentam como nuvens de trovão; agora se sou amado já não sei e mais uma vez francamente nem quero saber porque é bom sofrer assim, é uma espécie de cócega estes ses todos a rabicharem na alma, mas julgo que sim e se não ela que mo diga que eu não me ofendo. Assim defendido o amor de nós, devia ter ido para advogado, mas não sou, sou um simples assistente e como tal assisto e não pago nada e sigo assistindo como se não houvesse fim para o espectáculo das delícias dela; assim defendido o amor de nós, devia ter ido para juíz para adiar a causa ad eternun e permanecer este amor de nós por julgar em processo convenientemente arrumadinho e coberto pelo pó dos anos e seriamos felizes para sempre até ao supremo ou amnistiados ou perdoados pelas festas. Ai este amor por ti menina que agora ficas e daqueles que dói mesmo bem, e olhar para ti é igual a voar baixinho por entre sonhos muito altos e escrever-te poemas cheios de esperanças; ai menina se houvesse eco, ai menina se só ti quisesses, ai menina que não te vi hoje, ai menina se tu já te foste, ai menina onde estás, ai menina como estás, ai menina só. Amor de nós defendido, e nada saber da parte contrária é contraditório, mas quero lá saber! Na justiça poética o manual não é escrito à mão, o código não segue por estradas, e se eu decido amar sou ditador de cátedra, e Amo! Segue este coração o seu ritmo próprio, e nada nem ninguém lhe dita regras; sou assim se me quiseres menina, e não vale a pena ter pena. Agora, sem defesas, transformado este amor de nós em amor por ti, nada tenho para te dizer que já não te tenha dito: E se não ouviste, quero lá saber, e se não me viste olhar quero lá saber, e se nunca me viste quero lá saber; seguirei amando este amor de nós até que cesse, ou até outro amor de nós me faça esquecer o nosso. Terei pena, aí sim, de me esquecer de ti mas ficam os poemas dedicados a que nunca tirarei os títulos, e se esperavas promessas esta é a única que te faço. Adeus agora menina, amor de nós e mais uma vez Mozart, clarinete e melancolia, que é tarde e tenho de me ir.
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Fim D'hoje
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Nem sequer comecei.
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Adenda
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A memória é um tabuleiro de xadrez a que faltam peças, que podem ter sido comidas, mas não me lembro


sexta-feira, março 23, 2007

 
16º.

...hei-de perguntar se poderemos falar sobre o "sempre" e o "nunca". coisas que li num outro blog e que me pôs a pensar......Assim à 1ª., entre sempre e nunca há uma afinidade automática: são os dois absolutos e descrevem-se mutuamente. Sempre implica que Nunca se vai deixar de; Nunca implica que Sempre se evitará algo; diga-me o tal blog, estou curioso ( como sempre )......oh menino curioso...era no meu....:))))...

Sempre e nunca. Tiro no escuro, que perdi indicações de origem. Mesmo assim tento o texto. Deve-se sempre tentar o texto. Nunca se deve deixar de tentar o texto. Alfa e Ómega. Princípio e Fim. Sempre. Definitivo. Uma constante constante ao longo da linha temporal. Temporal, esse, nunca constante, porque depois da tempestade vem a mudança; ou a bonança; Nunca jamais em tempo algum. Negação absoluta de sequer uma vez, uma só vez para ver como é. Nunca é para sempre. Sempre nunca admite a excepção. Nunca fiz. Sempre farei. Como linhas paralelas, estes carris em que assenta a locomotiva do impossível. Nunca digas nunca. Sê sempre um homem de palavra. E se jurar nunca jurar, a primeira jura conta sempre, ou nunca conta? Baralhado estou nestas eternas contas. É tempo de buscar sinónimos.

Nunca. Tem dois sentidos possíveis: nunca aconteceu nem acontecerá; neste sentido é sinónimo do Caos primevo; o nunca é o que está antes do Universo, o caldo (?) de cultura do Cosmos; é um espaço sem Tempo, a que podemos remontar pela Filosofia, mas que a Física não abrange. Não É. O outro sentido é o da negação absoluta da repetição: o Nunca Mais; existiu, marcou ( daí o enfase: nunca mais ); mas está interdita a sua repetição. E é por aqui, pelo interdito, que se pode fazer a ponte ao primeiro dos sentidos, o do Never Never Land do Éden, que é o princípio do Tempo.

Sempre: implica pelo seu lado uma constante repetição ao longo do Tempo. É perfeitamente Físico, palpável. É activo, no sentido de positivo. Sempre É. Com todas as suas características inalteráveis, a maior das quais a permanência. E ao dizê-lo, invocamos, para sempre, a constância da sua existência. Podemos Filosofar com Ele, mas não sempre. É território para Amores, é sinónimo de Fidelidade, é elo e corrente no mesmo plano e momento e movimento. Se nunca era um Éden prévio, sempre é um Céu Eterno. Sempre é o próprio Tempo.

Interlúdio Romântico
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Nunca vi de ti mais que o canídeo
Feroz que preda impune a floresta
E tu a outra que teclas por instinto
Sei da letra o nome e isso basta

Eu por mim corro tempos que imagino
Por saber que o tempo não me larga
Eu por mim vou pensando e indo
É a minha maldição, a minha praga

Nunca e sempre, e sempre é nunca
Porque sempre nunca deixará de ser
E nunca, nunca cessará em nós
O bom desejo de permanecer

Fim D'hoje

Das citadas espero notícias que me permitam estender o raciocínio. Fica em aberto o assunto.

Adenda

Sempre respeitando o nunca, Adão não comia fruta. Foi o primeiro dos carnívoros. Nunca rejeitando a beleza, Eva estendeu a mão. Foi a primeira das ousadas.

Adenda 2

Conferir Mark Twain, numa edição do Circulo dos Leitores de há 30 anos, com uma capa de um vermelho extraordinário. Tem uns diários...

quarta-feira, março 21, 2007

 
15º.

Ando com raiva. A nada em concreto ou definido, só raiva. E nem sequer é daquelas iras que sobem em foguete explodem em cor e caem em cana, provocando o mero fogo florestal ou um galo no passante. Raiva mesmo. Parece a minha vida presa no vermelho, e o sinal não muda; parece a minha escrita presa ao já escrito, e não muda; parece a minha boca muda, e não fala. Fiz tudo o que tinha para fazer; os dados estão lançados; e, num repente, entre o agora e o já, encontro uma espécie de não evento, em que nada que faça, pense, deixe mexer, passe a ser, irá influenciar o que quer que aí venha. Estou no meu impasse à espera que outros se mexam. E não gosto nada. E dá-me raiva.

Fiz-me. Bem ou mal, bom ou mau sou o que fiz de mim. Nunca duvidei da minha responsabilidade quando nunca assumi responsabilidades; fui sempre à volta para não ter de saltar o muro, e sempre vi mais empenhando-me menos. Não sou Herói, não sou Mártir, não sou nada. Mas fui eu que escolhi este caminho. Não fui eu que o delineei, mas trilhei-o voluntário. Então porquê a raiva ( cantavam os Ornatos à uns anos ) se a culpa não é minha, serão efeitos secundários da Poesia?

Hoje é dia d'ela. Não do Poeta ( o culpado ) não do Leitor ( o cúmplice ), mas da Poesia ( a vítima? ). E é raro e estranho, este dia assim, este vinte e um do três, que me faz fabricar a trindade supra. Mãe ( Poesia ) Poeta ( Espirito Santo ) Leitor ( Filho ). Uma Mátria remota que Natália inventou ( pelo menos para mim ).

Poesia

Poesia não é só este poema
E as muitas formas que toma
Poesia é olhar além da forma
Fabricar visão e problema
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Questão a questionar o horizonte
Barco a vela no sal e também fonte
Ao poeta cabe ser meio Creonte
E outro meio em fé perdida crente
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Fim D'hoje
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Estou na encruzilhada e não surge o Demo que me inspire em troca desta alma imóvel. Assim, porque a poesia é sempre o silêncio, hoje vou breve. Queiram, senhores, aceitar a eloquência muda como penhor do verso por escrever.

Adenda

Sem ti sinto por ti a sentida perda ou deixei de sentir sem ti e já nada sinto?

quinta-feira, março 15, 2007

 
14º.

Ao levantar de manhã no abrir da janela o sol raso bate ainda velado pelo telhado em frente. Ontem podei os verdes que me coroam o muro, e este é novo como cenário. A natureza dúctil da flora lembra-me Luís XIV, e a domação de Versalhes como afirmação de que a prepotência pode ter belas caras. Eu não sou o Estado, sou do Estado, mas ainda me atrevo a podar sem rédea. Quanto mais tempo me doarão de coragem? Speer, o belo arquitecto, serviu a Besta em nome da Beleza e da Harmonia. Robick queria uma terceira ponte, tanto que o cubo lhe fez a vontade, e mais. A Febre de Urbicanda como manifestação Primaveril de uma contra-cultura esotérica apenas por falta de referências. Pode a parvoíce ser interpretada como afirmação de Liberdade?
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Ando com muitas ideias, o que nem sempre é bom. A dispersão é boa na rega, não na escrita. Ou será a expressão? Ele há tantas regras...
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Tomo o pequeno almoço em frente a outra janela, com um azul muito madrugada ainda. São sete e quinze e o dia é jovem e belo, fresco. Há uma pedofilia concreta no amar as manhãs? Pão leite café barba banho Beethoven para refrescar os pavilhões. Ando a mastigar levemente a completa das sonatas que me veio via amigo. A melomania é contagiosa, e transmite-se por via auricular. Pode emprenhar, está provado, mas saem belas crias. O Imortal Surdo fez trinta e duas destas. Ando inclinado entre a Tempestade e a Hammerklavier, o que prova que tenho boas inclinações. Já as declinações...
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Natureza
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Num horizonte coberto de nuvens
Acasteladas, sobrepostas, fantásticas construções
A arquitecta natureza trabalha o efémero ar
Com a dedicação obcecada do buscador de obras primas
Para deleite das democráticas massas, esta arte pública
Sem patrono nem mecenas, sem gosto nem destino
A artista natureza não é fugaz pintadora de telas a esquecer
É apenas diletante que rabisca e rasga, que cinzela e parte
À procura de uma perfeição que sabe inexistente
À procura de um tempo imóvel que lhe pare o ímpeto
Sabendo que nada lhe parará o ímpeto
Sabendo que sempre moldará um novo ar no mesmo espaço
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Dedicada é o outro nome dela
Não cessa o esforço, não dorme, não descansa
Cria constante a inconstante obra, a inacabada maravilha
Cria-se recriando-se, divertindo-se com uma imensa panóplia
De cores e massas, de volumes, de sombras e vazios
Gauguin que não parou sequer nos mares do sul
Van Gogh que nunca precisou de orelhas para buscar nos pássaros a canção inspiradora
Cega como Borges nunca leu bibliotecas
Mas elas estão cheias dela, plenas da sua graça como virgens grávidas
Fecundadas pelo sopro da divina mãe terra sem pecado, que não sabe sequer o que é pecado
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Nuvens do céu são elas céu mas nunca escondem paraísos
Árvores na terra são elas terra e nunca dão frutos proibidos
Pássaros e cães e formigas e homens e cobras e tudo o que se mexe
São obra desta criatura criadora, desta mestra sem colmeia
Imensa e circular natureza mãe de todas as mães e dela própria
Origem do todo e toda ela destino, fim perpétuo que nunca acabará
Inicio mítico de todos os mitos, criação sem passado
Com todo o futuro atrás e à frente, contendo tudo e por nada contida
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Natureza que é muito mais transcendente que todas as transcendências
Transcendente que é muito mais natural que todas as naturezas
Nunca única porque de tão vasta se encontra sempre na própria companhia
Grande como todas as palavras que alguma vez foram ditas e esquecidas
Enorme como todas as palavras que ainda não nasceram
Inúmera como todas as palavras que conheço
Infinita como todas estas palavras todas juntas vezes mil e ainda mais
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No entanto é nas nuvens que a vejo e admiro
É no fátuo e efémero que lhe invejo o brilho
Na leveza aparente do que faz que eu busco a emoção para os meus versos
Eles são obra dela, como eu sou, como esta folha que já foi árvore
Como estas palavras que pensei e agora escrevo
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Sou então seu cantor, ela me fez, imperfeito, fugaz, incompleto e inábil
Mas não me importo
Tudo o que vejo, o que cheiro, tudo o que toco, ouço e que provo
São obra sua, dos cinco sentidos retiro todas as direcções e sensações
E sendo cantor, imperfeito, fugaz, incompleto e inábil
Sou assim porque assim ela me quis, sou assim porque sou dela
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Interlúdio Romântico
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Rainha
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Sobre a luz do sol se esconde
Uma luz ainda mais viva
Por trás dele há uma estrela
Mais brilhante e colorida
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Sei que és tu e não vejo
Nos meus olhos tua imagem
Estás para além do desejo
Noutra terra, noutra margem
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Queria ter-te aqui agora
No meu colo, nos meus braços
Fazer de ti minha aurora
A rainha dos meus paços
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Fim d'hoje
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A Forma
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A Forma obceca os seus cultores. A criação, quando é acto voluntário, é, quase sempre, baseada na bagagem, na cultura, de quem cria. Os verdadeiros inovadores ou mexiam-se em florestas virgens, ou eram impressionantemente bem informados. Fazer é sempre, ou quase sempre, um acto reflectido, e a qualidade ressente-se quando não é escudada numa “cartilha”. A linguagem do autor pode ser própria e intransmissível, mas tem de ser captável. Porque só existe criação com audição, e esta deve ser, ela própria, informada. Daí, o artista tem de ser um obcecado. Ou um leigo com pontaria.
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Elaborando
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As artes são edifícios. Mesmo quando o pressuposto é a negação do edifício, tem de o autor proceder a uma demolição prévia. O vago, o impreciso, o leve, são obtidos com um imenso esforço, quando é suposto serem sinceros. Criar involuntariamente acontece, mas não é eficaz, embora possa ser durável. Assim, quem julga a Forma? O Tempo. E a Substância? A própria Forma.
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Adenda
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Pode ser o Adeus corrido em Etapas, como a Volta, ou volta e meia acaba a mei...
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Adenda 2
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Reler, sem muita pressa, “A Febre de Urbicanda”, de Schuiten e Peeters

segunda-feira, março 12, 2007

 
13º.

Fosse o caminho linear, seria o destino sempre igual. Mas, como não é, o problema é a duração. O fim, esse é sempre o mesmo, o que varia é a medida em que recordamos e em que somos recordados. O Herói morre novo e deixa marca, o pobre morre novo e marcado. Há quem escreva um Leopardo e conquiste o Mundo, há quem escreva uma Clepsidra e conquiste um bairro. O sábio morre velho e sábio, o inepto morre velho e sabendo que foi inepto. Só que o sábio pode ser desmentido, o inepto terá sempre razão. Viveu para nada e nada o lembra, ao outro lembram-lhe sempre o erro; e pode só ter sido um. Por isso, senhores que trabalhais para o futuro, lembrai-vos sempre de não trair o presente.

Circus

Num arame suspendido entre este e mais aquele
Flutua descontraído o funâmbulo persistente
( Porque não persistindo cai )

Caminha, porque de caminhar se trata
Em fio cortante de navalha ausente
( Porque fez a barba de manhã )

Não vos disse, de mau, a distância que vai ao chão
Mas tereis visto já que é curta
( Porque a queda assim não doí )

Já o trapezista confia plenamente
Na habilidade, no instinto e na rede
( Sim, que a parvoíce já paga imposto )

E pode voar, voar, voar
Que sabe que no poleiro tem destino assegurado
( preso em corda grosa em quatro apoios)

Os cavalos tigres e leões
Apanham e aprendem
( A Arena tem um preço )

A Primavera

A Primavera chegou sem pezinhos de lã, que já não são precisos, que já está pró quente. Março forrou-me o quintal de verdes novos, e o cheiro, quando não sopra de Sul e só cheira a Etar, entra nas narinas e provoca convulsões cardíacas. Só me apetece gemer e namorar. As mulheres não gostam de mim porque eu sou bruto. Sou bonito, mas bruto. E pobre. Gostava de ser rico para ser bruto à vontade. Mas analisando, eu já sou bruto à vontade, e pago menos impostos. Vou então contentar-me em ser bonito, bruto e só. Mal acompanhado quando me convier, claro.

Antigamente não gostava da Primavera porque não tinha roupa de meia estação. Agora tenho, mas não é por isso que comecei a gostar dela, foi o nariz. Antes de vir para aqui era escravo das rinites, e passava toda a santa estação a espirrar e a assoar. Aqui, com o mar acolá, o iodo ou a brisa abriram-me o sentido, e posso, com cuidado e concentração, definir no ar os aromas novidade que esta renascença trás. Agora tenho cinco sentidos, e a Primavera ganhou cores novas.

Fim D'hoje

Comecei a falar de duração. Este vai ser curto

Adenda

A existência de Deus e o Adeus serão primos Teológicos, ou a Divindade nunca se despede?

terça-feira, março 06, 2007

 


 
12º.

A chuva cai gélida na minha cabeça quente. O meu pensar vagueia, temperado a comprimidos. Onde estava eu quando deixei de ser-me? Acredito que nas mãos tenho o traço do destino, na linha do trabalho. O meu monte da lua é nocturno, a minha linha da sorte eclipse. Vejo, pelas lentes raiadas de chuva, um mundo disperso e da consistência de um riacho, ouço o canto da água que cai e tenho frio e saudades de sol e outra. Outra mulher, outra vida, outra via. As que tive não me servem já, ultrapassou-me a minha exigência e não me deu boleia.
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Just Lonelly
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Um só corpo na cama de casal
Um casal de pombas arrulha no telhado
Sim, mais um acordar normal
Outro dia húmido de acordar cansado
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Levantar a barba o banho
Relembro a Beleza Americana
Desço a escada e ponho Coltrane
Giant Steps para a alma tacanha
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No computador dou uma voltinha
Blogo aqui e ali e à tardinha
Virei ver quem me viu
Sem saber se alguém sentiu
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Esta mágoa rasteira que me cobre
Este medo de ser que tudo encobre
Quero outro eu atrás das linhas
Quero mudar as letras minhas
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Vícios
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Xanax

Virei-me para o Xanax para combater a nicotina, e ando anestesiado pela vida, como se muito vinho me corresse pelas veias, ou se aquela boa droga marroquina que havia antigamente ainda me limpasse os pulmões e me pintasse a alma. As coisas chegam até mim diferidas, sem impacto, como numa câmara lenta à là Matrix. Eu nem sequer me desvio, e morro todos os minutos porque me faz falta o sentir directo. Mas a covardia da alma nunca saí à rua sem colete para-balas, como os olhos nunca arriscam ficar sem lentes, como a erudição não é nada sem as suas mesquinhas referências. Sei de mais. E sinto de menos. E sinto muito, este defunto eu, sinto-me muito. E esta pena, que não é o Palácio alcandorado, enterra-me numa catacumba de dores frias. E desesperadas, sem esperança.
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Excesso
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Sexta-feira mergulhei num mar de álcool, só saí de lá ontem. Perdi. E nem sabia que estava a jogar. Gosto de Jack Daniels com água das pedras. Fui parar a uma Noite Africana. A música tomou conta de mim, e mais não lembro. Tinha acordado às 5, fui a Lx. ver o Columbano, cumprimentei-o e saí estasiado, subi ao Castelo para mergulhar no Tejo, depois vim embora e queria, muito, ter ficado. Comprei um livro de desenhos do Pomar no Oriente. As 3 já estava em Coimbra. Jantei com um amigo corvina e vinho branco, e o resto já contei. Sábado às 5 tentei beber uma chávena de chá verde. As minhas mãos pareciam castanholas. Irei voltar a beber, mas não tão cedo.
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Interlúdio Romântico
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Serve a Espera
. .
Serve a espera de antecâmara
Ao que queremos do futuro
Mobilada a esperança-fera
Ambição de muro a muro
.
Sala ambulante, portanto
Caravana de ilusões
Tenda de circo ao relento
Abrigando multidões
.
Que futuro é já agora
Já depois do que escrevi
Quando agora é o que fora
Quando o longe é já daqui
.
Que o futuro não está
Depois de hoje, afinal
O futuro é para lá
E p’ra cá numa espiral
.
Serve a espera de antecâmara
Ao que queremos do presente
Mobilada a esta hora
E de movimento ausente.
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Sala quieta, portanto
Estátua fria, mármore branco
Á inércia monumento
Cena imóvel, vasto palco
.
Que presente nunca é
Nunca foi, jamais será
Que presente apenas é
Vácuo entre agora e já
.
Que o presente não está
No dia d’hoje, afinal
No presente nunca há
Nada que seja mortal
.
Serve a espera de antecâmara
Ao que vimos no passado
Mas passado, foi embora
E é caminho encerrado
.
Sala vazia, portanto
Sem nada que ver por dentro
Só janelas, sem paredes
Em que pendurar lamento
.
Que passado é para sempre
Já antes do que escrevi
Quando ontem ainda é hoje
Quando o fruto é já semente
.
Que o passado não está
Antes do hoje, afinal
Nunca está aonde estava
Mobilidade total
.
São meus olhos Mestre-Tempo
É meu coração sineiro
É de espera o movimento
Tinta não há no tinteiro
.
E o meu tempo sou eu
E as formas que quiser
E o destino faço-o eu
Com a voz do que disser
.
Encerro então esta espera
Também antes de esperar
Tenho gente que me espera
Termino aqui meu cantar
.
Tenho d’ir chocar de frente
Com gente que está lá fora
Que como eu não lamente
O tempo qu’é o de agora!

Fim D'hoje
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Era outro quando escrevi isto, mas sou outro todos os dias. Ando a fumar menos; não quero fumar nada. Beber, só para afogar as mágoas, e elas andam tantas! Criei-me bicho do mato, e não percebi que o meu mato era a selva urbana. Mas sei que as maravilhas me perseguem, e sei que as amo. Voltando a sábado, comprei uma enciclopédia de ilustração portuguesa em 5 volumes; quando, sentadinho na minha mesinha favorita do Tropical, passou por mim um senhor de fato e gravata ( impecável ) que em vez da mala da praxe trazia um aspirador, velho e relho, com uma fleuma absolutamente britânica. À frente a Feira do Disco: Giant Steps, Coltrane, Berlim, Lou Read, 12 Lieder, Schubert by Schwarzkopf; sai de lá muito leve e quase não me custaram nada. Chegado a casa, na varanda a apanhar sol e a ouvir os resultados da pesca, passam em baixo quatro caramelos transportando um colchão azul bebé à cabeça, como um andor. De manhã tinha visto no DN um anúncio do Festival da Lampreia, tendo como cabeça Carlos do Carmo. A decadência dos espécimes. E mais, muito mais. A última que me lembro foi um puto em frente ao Dolce Vita sentado com um ar indescritível numa caixa de papel de fotocópias, e era o pensador de Rodin! É abrir os olhos; a alma lava-se sozinha.
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Adenda

Paulo by Maria – Quebra Costas 2007

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