5º.Intróito“Você não tem medo de mim, você não tem medo de mim
Você tem medo é do amor, que você guarda para mim.
Você não tem medo de mim, você não tem medo de mim
Você tem medo é de você, você tem medo de querer
Amar”
( Via Adriana )
Perde-se quando se perde a possibilidade. Enquanto sobrevive a esperança, ninguém assume derrotas, faltas, necessidades. Aqui, no olho do furacão, onde a paz subsiste porque as paredes de chuva e morte gostam como Bach do contraponto, olho o meu futuro circular e sei que não terei futuro. E, estranhamente, sei-me em paz. Perdi a possibilidade. E não tenho fuga. Mas ainda tenho Bach.
Ena
Chove desalmadamente é Santo António a cinza do dia cobre o som de Bach. Sai-me a linha como de pesca de ideias assim estou sem tema sem cena sem nada que não seja a Suite triste que um velho recusou gravar até ser impossível adiar. Gravou-a numa Igreja Francesa como único lugar possível para um Russo gravar este Alemão. Há uma Europa de Música que é tão indesmentível como a consistência húmida deste fim de dia. Johann Sebastian Bach; Cello Suite Nr. 6 BWV 1012 D-dur; Mstilav Rostropovich. Ena.
Consequência lógica de fazer anos e dar de prenda por meu pai a mim o melhor som. O velho ficou feliz quando lhe mostrei os discos. Eu também. Há alturas que sofro de infantilismo. Mas são boas alturas, usualmente. Como esta de temperar a chuva esquisita com o som raro de um passado que tem tanto a ver connosco que impressiona. A música é um óculo virado ao ido. E trá-lo para perto; do ouvido e do peito.
Vira agora o disco; o de cima, agora a Nr. 2 BWV 1008 d-moll. Consequência da chuva, este tornar o D em d e o –dur em –moll. Devia ter prestado atenção quando me tentaram ensinar música. Não sei se Sto. António tinha ouvido, mas se tivesse, em Coimbra a olhar os olivais ou em Pádua a conversar com os peixes, assobiaria uma marchinha quando se sentisse feliz. Como em dias como este, em que Mão Santa faz chover um maná liquido sobre o Som dos Séculos. Ena.
Passam gaivotas em bando sobre mim como horas de ponta. O mar às riscas azuis e brancas bate seixos em cordão. Colar de mar. Vento exactamente de Norte a alta e constante velocidade. Brilha um inclemente sol.12 de Outubro na praia. Viva o aquecimento global.
Ouvidos forrados a Bach. Suficiente ainda assim para ouvir a onda. Olhos suficientemente escuros para aceitar o sol. Meti um quilo de seixos na mochila, talvez mais. Um deles é um pedaço de quartzo quase rectangular com 15 cm de comprido. Pesado e belo ainda mais quando o vi. A quimera do seixo é o consolo do pobre. Pepitas de nada sal e pancadas, tirar pedras do mar é quebrar o ciclo. Devia ser proibido, qualquer dia não há areia.
O vento impede-me de ler e acender os constantes cigarros. Tinha ideias de duna mas é longe e tenho preguiça. Deitei-me na corcunda da maré alta e fiz uma poltrona diáfana de areia e toalha. Este vento mata-me.
O sindicato foi amigo e marcou a greve num dia de sonho. Os amanhãs que cantam serão assim? A Revolução passa forçosamente pelo grito do mar. Há um couraçado de nome bizarro nos oceanos da revolta. Há um filme de um realismo russo sobre o tombadilho. Há um terrível Ivan que servia de imagem a uns sete mares dos Sétima Legião. As ondas consequentes afirmam na sua gramática tonal a ponderância da insistência. Teorema provado a seixo com sabores a sal.
Interlúdio Romântico
Dúvida
Se esta ponte impossível chegasse ao destino
Se este dia infindo enfim terminasse
Se fosse agora o já que já não espero
Dúvida
Sempre o enorme Se da dúvida
Será finita a infinita espera
Durará enquanto dure
Não me falta nada
Mas tenho excesso de ausências
Estou farto de ser
Não sei bem o quê
Mas não quero nada
Os sonhos ainda me perseguem
Nesta montaria vaga
Não me sei lebre ou cão
Não me sei
Talvez queira algo, então
Um nome próprio, decente
Uma placa que indique caminho
Uma direcção para as minhas cartas
Talvez seja eu quem persegue os sonhos
Como voos de ave, como brisas cálidas
Mas não quero chegar-lhes
Preso no labirinto, meu fio é curto
Não vou chegar ao fim da história
Não vou saber a cara ao monstro
Sempre o Se enorme da dúvida
Sempre o sonhar novas perguntas
E sempre o não querer nada senão sonhos
Dúvida
Ou a não certeza de estar certo
Ou o não saber errar por não saber tentar
Sonhar
Como única rota para o impossível
Contemplo a ponte sobre o algo assim
A curva qu’ela descreve sobre o algo em mim
E sonho
Não como quem espera, mas como quem sonha
Não como quem faz, mas como quem tenta
Como quem erra
No fim persistirá, não tenho dúvidas
A dúvida
Os meus sonhos d’ontem já não são
Perenes na sua inconsistência
E o erro permanecerá a base
O alicerce dos de amanhã
Metrónomo rápido quando não é lento
Bate o coração os porquês, os sins
Os nãos, os assins
Num ritmo ditado pela voz ausente
Pela regra não escrita
Pelo sonho
Pela dúvida
Bate sinónimo d’ incerteza
E pela certeza de ter de bater
Bate assim, porque sim
E já não duvido que irá parar
Como a ponte que não tem destino
Será meu destino parar de sonhar
Sigo então
Dúvida e sonho
E já tenho nomes próprios, decentes
Lavados e enxutos prontos a vestir
Encolhi a dúvida para o meu tamanho
Alarguei os sonhos para o infinito
Nunca mais duvidarei a lebre
E nunca mais duvidarei o cão
A montaria nunca passou de vaga
Passageira
Dúvida
A palavra certa no momento errado
O verso acabado qu’ainda nos ressoa
A vaga na areia como fim de tudo
Ou o erro enfim como um nome novo
Interlúdio Romântico 2
Na pausa que divide o passo
No intervalo ínfimo que separa os átomos
No instante imperceptível que rompe os instantes
No momento impossível que separa o raio e eu vê-lo
Estás tu
Nos interstícios, nas fissuras, nas pausas
Estás sempre tu
És a união de todas as dimensões
O fulcro de todas as alavancas
O centro de todos os círculos
O fim de todos os meios
A razão de todos os argumentos
És
Sem adjectivos nem conclusões
Apenas És
Realidade
Encarando objectivamente a realidade, perco sentidos. A fantasia, como motor, não se compadece com defeitos de chassi e buracos na estrada. Rola à velocidade do imaginar possível. Estou triste. E nem é por mim. É pelo caminho encerrado e a porta trancada à beleza do impossível. Os sonhos morrem, todas as noites me morrem. Mas os que morrem em frente dos meus olhos abertos e atentos são doridos. Olha, vem comigo fazer o funeral solene, cremar esperança em fogueiras de sonho e mel, e tossir, e dizer que a lágrima no canto do olho é só fumo. Olha, vamos à procissão macabra e em mais fumo de archotes e velas sonhar, ainda, ressurreições. E com um pouco da Fé que acima repeti, esperar amanhã como se esperam barcos, ou que a chuva passe. Olha, Adeus propositadamente maiúsculo. Olha, já não estou.
Adeus D'hoje
Sei que me falta na mão melancólica
O arranhar suave de tu estares
Lisa, ó parede lisa de meus quadros
Vou eventualmente ser outro
Nos braços de um futuro
O medo que tu tens de ti
Ò passada esperança
Pensaste nos meus olhos
A culpa é toda tua
Ò pesada esperança
Eu, leve como um bafo de Inverno
Caminho sobre ti como nas folhas dos plátanos
O ruído de ti sob os meus pés
Não me soa já a coisas boas
Perdi-te como a um passo leve
Adenda
Não creias nos outros espelho. Crê em ti vidro, gume e vontade. Abre uma mão à esperança, e com a outra agarra-te ao possível. E, de vez em quando, salta, salta apenas para o vazio na fé que algo te segure. Beijo aqui um vento de amanhã e glória, e sei que vou ouvir a canção da ceifa. Mas sei que não será contigo. Perdi-te a Fé.