Virei-me para o Xanax para combater a nicotina, e ando anestesiado pela vida, como se muito vinho me corresse pelas veias, ou se aquela boa droga marroquina que havia antigamente ainda me limpasse os pulmões e me pintasse a alma. As coisas chegam até mim diferidas, sem impacto, como numa câmara lenta à là Matrix. Eu nem sequer me desvio, e morro todos os minutos porque me faz falta o sentir directo. Mas a covardia da alma nunca saí à rua sem colete para-balas, como os olhos nunca arriscam ficar sem lentes, como a erudição não é nada sem as suas mesquinhas referências. Sei de mais. E sinto de menos. E sinto muito, este defunto eu, sinto-me muito. E esta pena, que não é o Palácio alcandorado, enterra-me numa catacumba de dores frias. E desesperadas, sem esperança.
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Excesso
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Sexta-feira mergulhei num mar de álcool, só saí de lá ontem. Perdi. E nem sabia que estava a jogar. Gosto de Jack Daniels com água das pedras. Fui parar a uma Noite Africana. A música tomou conta de mim, e mais não lembro. Tinha acordado às 5, fui a Lx. ver o Columbano, cumprimentei-o e saí estasiado, subi ao Castelo para mergulhar no Tejo, depois vim embora e queria, muito, ter ficado. Comprei um livro de desenhos do Pomar no Oriente. As 3 já estava em Coimbra. Jantei com um amigo corvina e vinho branco, e o resto já contei. Sábado às 5 tentei beber uma chávena de chá verde. As minhas mãos pareciam castanholas. Irei voltar a beber, mas não tão cedo.
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Interlúdio Romântico
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Serve a Espera
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Serve a espera de antecâmara
Ao que queremos do futuro
Mobilada a esperança-fera
Ambição de muro a muro
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Sala ambulante, portanto
Caravana de ilusões
Tenda de circo ao relento
Abrigando multidões
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Que futuro é já agora
Já depois do que escrevi
Quando agora é o que fora
Quando o longe é já daqui
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Que o futuro não está
Depois de hoje, afinal
O futuro é para lá
E p’ra cá numa espiral
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Serve a espera de antecâmara
Ao que queremos do presente
Mobilada a esta hora
E de movimento ausente.
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Sala quieta, portanto
Estátua fria, mármore branco
Á inércia monumento
Cena imóvel, vasto palco
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Que presente nunca é
Nunca foi, jamais será
Que presente apenas é
Vácuo entre agora e já
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Que o presente não está
No dia d’hoje, afinal
No presente nunca há
Nada que seja mortal
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Serve a espera de antecâmara
Ao que vimos no passado
Mas passado, foi embora
E é caminho encerrado
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Sala vazia, portanto
Sem nada que ver por dentro
Só janelas, sem paredes
Em que pendurar lamento
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Que passado é para sempre
Já antes do que escrevi
Quando ontem ainda é hoje
Quando o fruto é já semente
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Que o passado não está
Antes do hoje, afinal
Nunca está aonde estava
Mobilidade total
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São meus olhos Mestre-Tempo
É meu coração sineiro
É de espera o movimento
Tinta não há no tinteiro
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E o meu tempo sou eu
E as formas que quiser
E o destino faço-o eu
Com a voz do que disser
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Encerro então esta espera
Também antes de esperar
Tenho gente que me espera
Termino aqui meu cantar
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Tenho d’ir chocar de frente
Com gente que está lá fora
Que como eu não lamente
O tempo qu’é o de agora!
Fim D'hoje
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Era outro quando escrevi isto, mas sou outro todos os dias. Ando a fumar menos; não quero fumar nada. Beber, só para afogar as mágoas, e elas andam tantas! Criei-me bicho do mato, e não percebi que o meu mato era a selva urbana. Mas sei que as maravilhas me perseguem, e sei que as amo. Voltando a sábado, comprei uma enciclopédia de ilustração portuguesa em 5 volumes; quando, sentadinho na minha mesinha favorita do Tropical, passou por mim um senhor de fato e gravata ( impecável ) que em vez da mala da praxe trazia um aspirador, velho e relho, com uma fleuma absolutamente britânica. À frente a Feira do Disco: Giant Steps, Coltrane, Berlim, Lou Read, 12 Lieder, Schubert by Schwarzkopf; sai de lá muito leve e quase não me custaram nada. Chegado a casa, na varanda a apanhar sol e a ouvir os resultados da pesca, passam em baixo quatro caramelos transportando um colchão azul bebé à cabeça, como um andor. De manhã tinha visto no DN um anúncio do Festival da Lampreia, tendo como cabeça Carlos do Carmo. A decadência dos espécimes. E mais, muito mais. A última que me lembro foi um puto em frente ao Dolce Vita sentado com um ar indescritível numa caixa de papel de fotocópias, e era o pensador de Rodin! É abrir os olhos; a alma lava-se sozinha.
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Adenda
Paulo by Maria – Quebra Costas 2007