14º.Ao levantar de manhã no abrir da janela o sol raso bate ainda velado pelo telhado em frente. Ontem podei os verdes que me coroam o muro, e este é novo como cenário. A natureza dúctil da flora lembra-me Luís XIV, e a domação de Versalhes como afirmação de que a prepotência pode ter belas caras. Eu não sou o Estado, sou do Estado, mas ainda me atrevo a podar sem rédea. Quanto mais tempo me doarão de coragem? Speer, o belo arquitecto, serviu a Besta em nome da Beleza e da Harmonia. Robick queria uma terceira ponte, tanto que o cubo lhe fez a vontade, e mais. A Febre de Urbicanda como manifestação Primaveril de uma contra-cultura esotérica apenas por falta de referências. Pode a parvoíce ser interpretada como afirmação de Liberdade?
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Ando com muitas ideias, o que nem sempre é bom. A dispersão é boa na rega, não na escrita. Ou será a expressão? Ele há tantas regras...
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Tomo o pequeno almoço em frente a outra janela, com um azul muito madrugada ainda. São sete e quinze e o dia é jovem e belo, fresco. Há uma pedofilia concreta no amar as manhãs? Pão leite café barba banho Beethoven para refrescar os pavilhões. Ando a mastigar levemente a completa das sonatas que me veio via amigo. A melomania é contagiosa, e transmite-se por via auricular. Pode emprenhar, está provado, mas saem belas crias. O Imortal Surdo fez trinta e duas destas. Ando inclinado entre a Tempestade e a Hammerklavier, o que prova que tenho boas inclinações. Já as declinações...
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Natureza
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Num horizonte coberto de nuvens
Acasteladas, sobrepostas, fantásticas construções
A arquitecta natureza trabalha o efémero ar
Com a dedicação obcecada do buscador de obras primas
Para deleite das democráticas massas, esta arte pública
Sem patrono nem mecenas, sem gosto nem destino
A artista natureza não é fugaz pintadora de telas a esquecer
É apenas diletante que rabisca e rasga, que cinzela e parte
À procura de uma perfeição que sabe inexistente
À procura de um tempo imóvel que lhe pare o ímpeto
Sabendo que nada lhe parará o ímpeto
Sabendo que sempre moldará um novo ar no mesmo espaço
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Dedicada é o outro nome dela
Não cessa o esforço, não dorme, não descansa
Cria constante a inconstante obra, a inacabada maravilha
Cria-se recriando-se, divertindo-se com uma imensa panóplia
De cores e massas, de volumes, de sombras e vazios
Gauguin que não parou sequer nos mares do sul
Van Gogh que nunca precisou de orelhas para buscar nos pássaros a canção inspiradora
Cega como Borges nunca leu bibliotecas
Mas elas estão cheias dela, plenas da sua graça como virgens grávidas
Fecundadas pelo sopro da divina mãe terra sem pecado, que não sabe sequer o que é pecado
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Nuvens do céu são elas céu mas nunca escondem paraísos
Árvores na terra são elas terra e nunca dão frutos proibidos
Pássaros e cães e formigas e homens e cobras e tudo o que se mexe
São obra desta criatura criadora, desta mestra sem colmeia
Imensa e circular natureza mãe de todas as mães e dela própria
Origem do todo e toda ela destino, fim perpétuo que nunca acabará
Inicio mítico de todos os mitos, criação sem passado
Com todo o futuro atrás e à frente, contendo tudo e por nada contida
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Natureza que é muito mais transcendente que todas as transcendências
Transcendente que é muito mais natural que todas as naturezas
Nunca única porque de tão vasta se encontra sempre na própria companhia
Grande como todas as palavras que alguma vez foram ditas e esquecidas
Enorme como todas as palavras que ainda não nasceram
Inúmera como todas as palavras que conheço
Infinita como todas estas palavras todas juntas vezes mil e ainda mais
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No entanto é nas nuvens que a vejo e admiro
É no fátuo e efémero que lhe invejo o brilho
Na leveza aparente do que faz que eu busco a emoção para os meus versos
Eles são obra dela, como eu sou, como esta folha que já foi árvore
Como estas palavras que pensei e agora escrevo
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Sou então seu cantor, ela me fez, imperfeito, fugaz, incompleto e inábil
Mas não me importo
Tudo o que vejo, o que cheiro, tudo o que toco, ouço e que provo
São obra sua, dos cinco sentidos retiro todas as direcções e sensações
E sendo cantor, imperfeito, fugaz, incompleto e inábil
Sou assim porque assim ela me quis, sou assim porque sou dela
.Interlúdio Romântico
.Rainha
.Sobre a luz do sol se esconde
Uma luz ainda mais viva
Por trás dele há uma estrela
Mais brilhante e colorida
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Sei que és tu e não vejo
Nos meus olhos tua imagem
Estás para além do desejo
Noutra terra, noutra margem
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Queria ter-te aqui agora
No meu colo, nos meus braços
Fazer de ti minha aurora
A rainha dos meus paços
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Fim d'hoje
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A Forma
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A Forma obceca os seus cultores. A criação, quando é acto voluntário, é, quase sempre, baseada na bagagem, na cultura, de quem cria. Os verdadeiros inovadores ou mexiam-se em florestas virgens, ou eram impressionantemente bem informados. Fazer é sempre, ou quase sempre, um acto reflectido, e a qualidade ressente-se quando não é escudada numa “cartilha”. A linguagem do autor pode ser própria e intransmissível, mas tem de ser captável. Porque só existe criação com audição, e esta deve ser, ela própria, informada. Daí, o artista tem de ser um obcecado. Ou um leigo com pontaria.
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Elaborando
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As artes são edifícios. Mesmo quando o pressuposto é a negação do edifício, tem de o autor proceder a uma demolição prévia. O vago, o impreciso, o leve, são obtidos com um imenso esforço, quando é suposto serem sinceros. Criar involuntariamente acontece, mas não é eficaz, embora possa ser durável. Assim, quem julga a Forma? O Tempo. E a Substância? A própria Forma.
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Adenda
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Pode ser o Adeus corrido em Etapas, como a Volta, ou volta e meia acaba a mei...
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Adenda 2
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Reler, sem muita pressa, “A Febre de Urbicanda”, de Schuiten e Peeters