21º.
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O esteta contempla a cena sem precisar de palco. Basta o mundo. O tecto o céu o texto a fala o mio o pio o vento a ventar sinfonias o sol a pintar obras primas. Basta o mundo. Abro a porta que não tenho janelas neste meu armazém, só portas grandes vermelhas com uma porta central são duas as portas do meu armazém, sem a que dá para as escadas e sem a que dá para o quintal que é a que abro agora. O verde fresco das trepadeiras, a madressilva já vai dar flor esta semana e o ar vai encher-se de açúcar, e lembro quando chupávamos as flores, nós e as abelhas na comunhão dos néctares.
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Faz uma tarde como faz a Primavera.
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As andorinhas vão voltar a não fazer ninho no meu beiral e eu guardo-lhes um bocadinho de rancor, mas que se há de fazer, devem ter melhor sítio. Só as pombas, que se enamoraram da minha caleira, continuam a ter de ser espantadas, de mansinho, porque começam a arrulhar às seis e meia da manhã mesmo por cima da minha cama, e a natureza é bonita mas não exageremos. E depois são porcas, as desgraçadas. Os melros esquivos tem, dá-me impressão, com cada Primavera mais confiança em mim, mas a distância segura, metro e meio se tanto, e depois voam com enormes pios. São os meus preferidos, mas não por causa do Junqueiro. É mesmo por causa do bico.
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Só vim aqui porque tenho de picar o ponto. Os blogs, afinal de contas, são família, e é suposto telefonar de vez em quando para ver se estão bem, se a vida corre, se não partiram nada e se os putos crescem. Mas não me apetece escrever, estes dias sugam-me, tiram-me a tinta da veia, a ideia da alma.
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Interlúdio Romântico
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Homem Nau em Própria Cuna
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Pela cabeça tratado
Como de cãibra ou ferida
Cuidadoso, medicado
Sigo indo pela vida
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Doente de minha mais alta
Parte, orgulho magoado
Não, a mim não me faz falta
O esquecido e o perdido
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Agora é grito que lanço
Como pedra a cão vadio
Já, hoje, sem balanço
Salto sem mirar vazio
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Deixo p’ra trás o talvez
Curvo a recta, invento a vez
De ser eu em próprio espaço
De ser eu o meu abraço
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Solto enfim do cais errante
Navego no meu destino
Tradição, o qu’era ante
Mim perdi, e está perdido
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Vou enfim voo
A asa da gaivota nómada
Sem ter terra nem ilhota
Voo por fim vou
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Mais, só quero luz e ar
Mais, só navegar
A jangada imaterial
O vazio temporal
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Zero afinal é nada
E do zero não parti
Anda, anda, onda amada
De ti eu nunca fugi
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Do algarismo ao número
Vou fundar nova colónia
Enche-la com mi memória
Prenche-la com meu húmus
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Estou farto da lição técnica
Que a experiência me ensinou
Vou apalpar os futuros
Com mão de quem nunca amou
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Basta, basta, basta
Findou o antigo eu
De tudo o que dele resta
Vou construir o que é meu
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Tornear-me-ei tronco virgem
Em volutas de mão minha
Serei a táctica selvagem
De ser arma e ser rainha
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Vou, irei, serei
Só não sei se amarei
Amarei em costa nova
Criada de minha Lei
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É esta a palavra
Escrita como é próprio e bom:
Sou ser serei
E serei em próprio tom!
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Outros, a entrada lhes é negada
Abram eles suas portas
Entre este zero e este nada
Vivo Eu com minhas Notas
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Pautado este papel
Ele é minha sinfonia
Sem maestro nem orquestra
Sem procurar sintonia
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Sou ser serei
Só
Até um dia ser
Pó
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Escala aberta como todas
Nego a mim o equilíbrio
Alma minha não perdoas
Pois nada te é devido
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Não sou do nada partido
Sou inteiro e inda justo
Devo a mim o tempo ido
Não em preço mas em custo
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Serei eu de mim batido
Templo de minha fé una
Ninguém mais esta convidado
Homem Nau em própria Cuna
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Fim D'Hoje
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Vinte e um, antigamente seria hoje maior este blog ( tábém que é batota, há um post não numerado, tecnicamente são vinte e dois ) Não o sinto maior. Mas também não está mais pequeno. Outro dia passei-o para word, tem mais de quarenta páginas. De qualquer maneira, parabéns, blog. És agora um homenzinho.
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Adenda
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Se a tristeza fosse um doce, os diabéticos chorariam lágrimas de sal?