Outro Tempo

Porque às vezes mais não é suficiente

sexta-feira, maio 18, 2007

 
24º.
.
A tremenda força da rotina abala, quando cai, o terreno à volta. E se são fundas as suas fundações, mais funda é a perturbação, o abalo, o sismo e a cisma. Pesa na saudade a vista plácida da janela que já não há, a confiança das paredes, o ranger hábito das portas, o cantar dos canos. A torre da rotina era bela por dentro, e por fora nunca se via, só quando a olhar a rua se topava, de deslize, um reflexo rápido no vidro de um carro. A torre da rotina era, mas já não é
.
No baldio, que a custo limpamos de escombros, desenhamos já a nova torre. Porque podemos trocar de torre, mas não podemos ser sem rotinas. Aparelhos, os nossos corpos, não funcionam sem a rede metálica das convicções, lembranças, desejos, opções. E habituados à lenga-lenga do princípio meio e fim, nada pomos de pé sem alicerce parede tecto. E para construir é necessária ordem e método: são indispensáveis as rotinas para erguer os amanhãs. O improviso morre belo e novo, ensina-nos a história. Dá uma bela memória, por vezes, mas não é consequente.
.
Quando caí, a rotina faz barulho e assusta a alma plácida. E divide a meio. E meio lamenta a torre, e meio anseia a nova. O que lamenta quer preservar a pedra, o pó, o sítio. O que anseia recusa a velha por já gasta ( se não, porque cairia ), quer diferente, melhor. E vão acabar ambos por juntar as cabeças e somar ideias e memórias, e tirar das retinas uma nova rotina. E pintá-la contra o céu, e entrar nela pela última vez. E só sair quando esta cair. Com ou sem estrondo, com ou sem razão. Porque as rotinas cessam como cessam os homens que as habitam.
.
Interlúdio Romântico
.
Das Palavras
.
Das palavras como tijolos
Que constroem meus arquitectados versos
Somo números que retiro a plantas
Precisas
.
Alicerce, parede, telhado
Tenho ao meus versos o amor pedreiro
Do que constrói, com suor e argamassa
Altivo edifício
.
Ergo-os no céu antes plano
Amarro-os aos ventos
Exponho-os aos olhares de quem passa
De quem os habita
Mesmo que seja só eu o fantasma desses sítios
Mesmo que mais ninguém sonhe poentes debruçado em suas janelas
.
Meus arquitectados versos
Mesmo os mais espontâneos
Alicerce, parede, telhado
Amarrados a amor pedreiro
.
No meu cérebro enclausurados
Recuperam liberdades matraqueados por estes dedos ágeis
Vão para o ecrã olhar para mim
Com olhos embaciados pelo brilho de uma luz nova
.
Olha, olha quem nos fez acotevelando-se uns aos outros
Olha, olha donde vimos sorrindo meio imbecis de serem outros
.
Ai meus arquitectados versos, de planta precisa nascidos
Ai palavras tijolo argamassadas a gramática e rima
Nasçam p'raí à medida da minha vontade escrevinhante
Tapem o sol amarrados aos ventos, sejam vistos em esplendores d'azulejo
Em rigores de telha e ferro forjado em varandas proeminentes de esperança
.
Eu, parteira pedreiro, irei, na medida de meus dedos
Na velocidade meiga de vos pensar
Dar-vos irmãos enquanto viva
Nesta termiteira sou rainha de inumeráveis ovos
Alimentado a vós protegido por vós, preso aqui
.
E ainda assim capaz de liberdade
Mãe impossivelmente masculina das minhas letras
Não creio no sexo da escrita, não creio anjos meus versos
E Deus, no adeus sempre presente, nunca me expulsou de nenhum lado
.
Assim arquitecto de termiteiras de tijolo
Alicerçado na convicção da verdade de mim
Sou mãe-pai dos meus versos
Assim os amo e os solto ao mundo
O mundo estreito da minha convicta liberdade
.
Small Talk About the Weather
.
O tempo é elástico mas é um elástico muito fininho, daqueles que só apertam um masso pequenino de papéis. Há um paradoxo no mundo dos elásticos. Se o elástico é grande para a carga, não serve e perdem-se papéis; se é pequeno, faz as folhas enrolarem-se em tubo. Ou parte, deixando-nos vazios de elástico. E de tempo. Porque o tempo, embora fininho, é o tempo que se perdeu a por as folhas em ordem, procurar o elástico e a fazer de parvo olhado pelo tubo a dizer "Sou o Galileu a olhar a Lua de Pisa". O que nos levava ao pisa-papeis. Mas não temos tempo, está sol e azul céu pela minha janela, e ela é boa meteorologista.
.
Fim D'hoje
.
Somos vida. Somos parte. Somos todo. Somos únicos, irrepetíveis e inimitáveis. E não somos nada. Dos olhos novos que virámos ao Espaço, ainda não colhemos senão distância e solidão. Dos olhos novos que viramos para nós, sabemos a origem comum e a certeza do diferente. Temos, como ninguém antes de nós, a noção no nosso lugar e dimensão. E não temos ainda nem um décimo da paz de um planeta gelado orbitando uma estrela moribunda. E pesamos o mesmo à escala do Cosmos. 0,0nada. Vejo as formigas no quintal no carreirinho, vejo-me a mim no meu carreirinho, acredito que alguém no seu carreirinho me vê. E tenho de acreditar no carreirinho. Evito pisar as formigas. Evito olhar as estrelas. Mas já não me evito a mim. Porque me sei único, irrepetível e inimitável. E porque estou ao meu alcance. E porque gosto de diferente.
.
Adenda
.
A certeza é irmã da consumação; A dúvida é prima da esperança; o fim.
.
Adenda 2
.
No sol tardio
Promessas de manhã
Um eu vazio
Praia vento
Onda chã
Coração lento

Comments:
Porque as rotinas cessam como cessam os homens que as habitam.
.
____________________________-


diz.me: porque escreves Tu tão bem?



ainda bem.



:)))))))))

enorme xi....pode ser?


Paulo.
 
Para "outro tempo" tens a memória muito curta.
 
importa-se de não ser tão preguiçoso??????


ke koisa....!!!!!


já tresli. quero mais.






beijos.
 
também já tresli. pouco a pouco tem-me vindo a fazer menos impacto, como se prova por só agora o dizer.

(se é que já consigo atribuir a tudo o que leio o significado que tem e não o que me parece estar lá mesmo de propósito para mim...)


o tempo é um elástico muito fininho, paulo, mas experimenta usá-lo como fisga, sendo a tua pele o alvo...

tanta coisa mais para comentar

que haveria.


fica só um beijo
 
É tudo tão belo, e eu, que acabei de chegar, que ainda não tresli, vou ter páginas abaixo a abaixo onde me deleitar até que mais a alma dite.

Como se diz no piano... porque escreves tão bem?
 
muito bom
 
Se isto é o teu conceito de " sem" ideias que será quando as tiveres?
Não quererias dizer cem ideias ? :)
Devias ter avisado que querias mais parabéns, tinha-te enchido o outro blog com resmas e resmas deles.
Tenho que cá voltar para ler outravez, a tua escrita é muito absorvente e com o neto aqui à volta não consigo a concentração suficiente.

Eu volto

beijos
 
Enviar um comentário



<< Home

Archives

fevereiro 2007   março 2007   abril 2007   maio 2007   junho 2007   julho 2007   agosto 2007   setembro 2007   outubro 2007   novembro 2007   dezembro 2007   janeiro 2008   fevereiro 2008   março 2008   abril 2008   maio 2008   setembro 2008   novembro 2008   dezembro 2008   fevereiro 2009   abril 2009   maio 2009   julho 2009   outubro 2009   janeiro 2010  

This page is powered by Blogger. Isn't yours?