39º.A trovoada que trazes pela cabeça solar
Assusta as coisas os bichos
Traz o medo elementar
Pelas cinco sensações
Não não és normal
Porém, quem decidiu a norma
Usualmente não te conhecia
Nem podia prever o gesto de recusa
A negação do senso
A tentação do vácuo
O abraçar do largo
Que é como quem diz o abraçar do nada
Se há distinção entre Homem e Mulher
Passa sobretudo pelo olhar
Há quem fale de cheiros e sons e toques e sabores
Eu acredito que se algo nos separa são os olhos
Ver o Mundo
A tremenda responsabilidade de ver o Mundo
Escapa
A quem acredita que o que conta é contar o Mundo
E escapar dele pela escada diáfana de um sonho
De Sul ou Norte
Ver o Mundo
É saber o momento incontável na procissão
Absolutamente Sagrada
Absurdamente Sagrada
Do nada ao tudo e outra vez ao nada
A maré e o refluxo cósmico
A que não se acede por matemáticas vãs
Nem por somas de letras
A que apenas se acede pelo fundir dos olhos
Pelo soldar das mãos ao absoluto Já
Por isso
Mulher que acredito diferente pelos olhos
Segue o sonho de Sul ou Norte
Eu fico cravado na minha duna de gaivotas
No murmulhar do Oceano extinto
Pelo tempo que velo
Inevitavelmente extinto
E absurdamente belo
E aqui, onde lavro a folha
Sei já morta a última semente
E a mecânica do verso oculta ao derradeiro Homem
E aqui, onde rezo o Hoje
Sei-te já ida desde que me nasceste
E a opção por nós diluída em fumo
38º.A espuma branca corre-me aos pés mergulho as mãos a concha o cabelo as sobrancelhas o sal na boca o pescoço de repente frio, esfrego as carótidas e os pulsos, os pés submersos afundam na pasta de areia o mar está daquela cor que às vezes é a dos meus olhos. Um dia, entre contas indiscretas soube que os meus nove meses começavam em Setembro, por isso sei que foi aqui, talvez frente a este mar que começou o desejo que me trouxe. Ouve cinco antes de mim, e o primeiro desejo sei que é mais de Sul, e até sei nomear a terra do primeiro olhar, mas o meu, se não falhou a conta, é daqui. O meu amor a este mar é sabe-lo pai primeiro, o gosto desta onda é sabe-la mãe antes?
Murmura, quase canta a água a entornar-se sucessiva na costa fito o sol e uma bênção de paz serena, de meiguice despojada veste-me o tronco nu arrepia-me primeiro o nariz depois a espinha e a sensação de uno com o mundo acentua-se. Faz-me falta o toque. Finco os pés na areia e incomodo um seixo com a ponta dos dedos, sei de peles mais frias, bocas mais mudas. Não me falta mais nada. E não tenho nada para dar. Não haverá frutos em Junho.
O teu amor sabia-me a pouco
Quando acabou sabia-me a nada
Haverá ainda algum amor para dar
Haverá ainda vontade de amar?
Um tempo de retornar
Ilude-me em miragem fria
Não sei de onde vim
Sei para onde não quero voltar
Interlúdio Romântico
Hoje não há.
Fim d’hoje
Amanhã há mais.
Adenda
“Sonhar o impossível, concretizar o belo, amansar a esperança” Dr. Tempo, quando soube que ia para Dr. outra vez.
Adenda 2
“A tonelagem de um navio é visível quando se pesa a totalidade da equipagem e o desgaste do motor de vante” Zé Marinheiro, Português de Braga, aquando adquiria um canudo numa loja do Chinês, dealbar da centúria corrente.
Adenda 3
“Vou comer ideias
Pagas em Propina
Restaurar as meias
Jantar na Cantina
Cantar o bom fado
Em altiva voz
Um pouco tocado
Com as mãos no cós”
Popular, in “Cancioneiro das Beiras, Sobretudo das do Meio” Edições Palimpsesto, Sangalhos, 1981 ( ó ié )
36º.No meu caderno de anotar pensamentos anotei um pensamento ilegível. A leitura de pensamentos passa, para mim, por passar a limpo. Aliás, muito da minha vida tem sido passar a limpo. Higienizar. Fiquei sem o pensamento. É natural que o volte a pensar, mas nunca será o mesmo. Momentos diferentes implicam pensamentos distintos. Coordenadas mentais diversas.
A vida como lição de incidência, de grau, da inclinação ( romântica ? ). O degrau. Sempre o degrau. 39 degraus. Ascenseur pour l’échafaud. Malle et Miles. Por acaso é Coltrane que roda. E bem. Nunca vi o filme, o que é uma falha. Tenho medo que me desiluda.
No meu caderno de anotar pensamentos vou anotar letra redondinha para o futuro, obviamente já em letra redondinha. Assim, senhores, desfrutem do privilégio de me lerem corrigido e ampliado. Coltrane sopra, tonitruante e magnânimo. A vida é bela debaixo de jazz.
Tenho no passo
A circulação das ondas
A ondulação da espiga
A decorada lição de andar
Que o andar molda-se
Constrói-se e recria-se
A deslocação carrega emoção
Diferença e projecção
Andar é ir com mais
Andar é colorir o espaço
Animal das calçadas
A minha sombra
Interlúdio Romântico ( a M. )
Pode a besta dar lições à bela?
E quatro dias de nada
Nem hora nem espaço
Coordenada para mim
Só a medida do abraço
Desprovida de música
A valsa dos amantes
Desejo de mais
Crença no antes
Assim como a ponte
Com que enfeitam meu rio
Medida vai ser a pé
Rio corrido a pé
( Antes no Choupal
Também havia um vau,
E chegado ao outro lado
Escorria por nós uma
Espécie de vitoria
Liquida )
Mondego de noites negras
Coimbra desprovida de estrelas
Na margem que te relvaram
Correm meus olhos
Atrás de outra maneira de ver
Pode a besta dar lições à bela?
Ou a memória alicerce do sonho
Está tão pesada de desejo
Que esqueceu onde nasceu?
Fim D’hoje
Curto e breve, que há viagem. Ainda há um trem entre mim e a noite. O passo gigante deste cais à outra gare. A ponte móvel, o passadiço encarrilado entre milho e vinhas, cidades. Vou no som. E devo, com toda a probabilidade, ir para o som.
Adenda
“Ascenseur pour l’echfaud” Miles Davis, 1957 ( séc. XX )
“Crescent” John Coltrane, 1964 ( também séc. XX )
Adenda 2
“Gostava de ser tão surdo como Betovem, mas menos bruto” Mell O’Men Modernis, polémicista e pacifista afamado, circa 900.
Adenda 3
A minha bicicleta tem um pneu novo. Não anda mais depressa, mas é como fazer obras em casa; parece que não está nada no sítio.
35º. Bis
A fotografia supra teria sido colocada entre "Pétala exactamente suspensa" e "Abstracto II". Não o foi, apenas por pura azelhice deste modesto bloguer. Por isso, senhores, os mil perdões do uso e o rubor da praxe.
Adenda
Abstracto I