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Uma febre antropológica assalta-me e estudo-me atento, dedicado, leio-me com a atenção que usualmente dedico aos clássicos. Ando sem escrever. Mas andei toda a vida sem escrever. Houve anos sem linhas. Houve anos de outras coisas, largos como tombadilhos de idas viagens. Como sempre, a escrita-prédio volta, inevitável. O tijolinho da palavra e a argamassa da vontade. Comunicar. Ou não. Abaixo se verá. A palavra devolvida em revolta, o retrato e os chinelos. Ficou uma amargura que entretanto não durou. A efemeridade da dor. As vezes por troca, outras por desgaste, excesso de uso. As dores são perecíveis ao tacto.
A ira. A idade tira-nos as iras. Uma a uma, as exaltações perecem, vítimas da usura do tempo. Virá o dia da morte da emoção, ou não. Serei um velhinho sensível? Espero que não. Quero uma velhice ríspida, sem netos nem esperanças. Ai azedar como o leite, medalhado por ter vivido, veterano de ver passar comboios. Tenho saudades de alternativas, mas não as teria seguido. Vinha aqui parar, de qualquer maneira. Condenado a mim. E, sinceramente, é leve pena. Sou bom de aturar. A auto-estima e a auto-confiança são sinónimos? Deviam ser. Ou não. O espírito do contraditório merece o acordo de todos os intervenientes. A bem da polémica, da retórica e da eterna dialéctica. Ando à procura de ajuda para pensar, e não a aceito. Prá’i.
Intrelúdio Romântico
Comunicar?
Compete a quem escreve descrever o truque? Ou magicamente apresentar o texto e dizer: Ei-lo! sem escalpelizar a virgula, sem escamar a trama, sem descarnar o fio de cobre improvável da electricidade de comunicar? Escrever sobre. Sobre papel. Sobre o mecanismo. Sobre mim e o outro e eu sendo outro e sobre ti sobre mim ou sobre ti sob o horizonte? A poesia é fácil quando se sofre mas há hinos à alegria a atravessar os séculos.
Comunicar? Receptor emissor mensagem ruído canal código. Escrever é comunicar?
Quando escrevo para mim comunico-me? E se a mensagem é confidencial e eu o intruso a ler-me? E se o canal está imbuído do ruído do ego? E se me não encontro a ouvir distraído no ler ou aconchegado num lar demasiado meu? Não, não me parece que escrever para mim seja comunicar. Registar, relatar, descrever; não comunicar. Isso implica outro sujeito. E esse sujeito deve querer ouvir.
O símbolo surgiu antes do signo, o significado é prévio ao significante. E se no princípio era o Verbo, a palavra é o que nos resta do Divino. Pode já estar morto, mas ainda o ouvimos. Mas, isso é certo, ele não pretendia comunicar. Não tinha, de Uno, ninguém com quem. O nosso Universo é filho da mais desesperada das solidões. Ou um mero embuste teológico. Fomos criados à imagem e semelhança de um mudo?
Certos como uma hieroglífica certeza, a que acedemos por janelas estreitas, olhamo-nos nos olhos e trocamos de língua e ensinamos e aprendemos; apreendemos? Não, não me parece. Resta-nos a profunda mudez fundadora, o grito que lançamos no nascer. Razão tinha Eva, que recusava ordens não escritas, razão tinha Moisés que trouxe a Lei em tábuas, razão tenho eu quando me recuso entender-me, codificar-me, vazar-me em molde.
Comunicar?
Fim d’Hoje
Curtinho como esperanças pequenas. A palavra anda perdida pela floresta dos dias, sem migalhas nem gengibre. A palavra saiu e não disse onde ia. Voltará, porque não se despediu. E a palavra escrita implica, porque alfabética, alguma educação. Por todos os arautos de todos os finados reinos, correu um dia. Anda cansada. Mas voltará, porque é de sua natureza. A palavra sabe-se redonda, e gosta de se circular.
Adenda
Bob Dylan, Masters of War, Freeweeling, 1963. Hó Yea.
Adenda 2
“A distância só se torna crónica pela ausência de meios de transporte” José, Engenier, primeira década do presente século
Adenda 3
“O poder redentor da jardinagem é a opressão fascista dos canteiros” Manel, jardineiro da CM do Barreiro, m.d.