19º.
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O desejo antecede a procura, esta começa pelos olhos, estes dizem às mãos que promovam o toque, o nariz por vezes reage com violência, e depois a memória e o discurso tentam, no jogo dos quereres, convencer o outro que o desejo é de ambos. Mais ou menos. Já me aconteceu ser fuzilado e sucumbir, sem apelo nem nada; já fui o Panzer e o Stuka e não acertei nem nada. Já aconteceu com a naturalidade do sopro, a neutralidade do nada. Já me esqueci, ainda hoje lembro. Já foi um Katrina, já foi uma brisa, já não foi, já nem fui. Nem elas.
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São muitas, as minhas elas, embora a maior parte nem saiba. Não que haja uma lista, com pontos e gradações, nem um modesto livrinho de capa preta a anotar os progresso de uma D. Juanice que a mim passa ao lado. Mas marcam-me sempre, mais umas, menos outras, outras vezes vezes, outras dividem, algumas somam, raras subtraem. Tenho tido sorte com o meu azar. Ainda tenho paciência para o romance. Nunca tive é pachorra para a conquista.
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Cheirar, gostar e montar, dizia uma amiga, era assim, como os cãezinhos, mas nós quisemos inventar o amor, e não há amor sem discurso. A paixão, estruturada, só é já paixão de nome. Pelo menos na nossa cidade, no nosso meio, nas nossas ruas e nos nossos sítios. Amanhã esta muito presente no com quem irei dormir hoje. Pelo menos para mim que sou do século passado, católico e reprimido. Tenho para mim que sou uma santola, carapaça por fora e caca por dentro. A sopa de marisco da minha alma já passou do prazo, e está lá fora a espera do homem do lixo.
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Pegajoso
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Segunda-feira a arrastar-se lenta
Estou pegajoso e mole
A alma como que fermenta
E ainda por cima não há sol
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Resta-me o escrever no amargo
Gosto da boca solitária
O gosto solitário e turvo
Desta vida funcionária
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Deste modo funcionário de viver
Dizia o grande O'
Ò se ao menos eu pudesse ter
Menos gosto em continuar só
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Dá
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Bélica belisca o adormecido acorda a pestanuda alma é tempo de aspirar ao novo fôlego. Já viste a minha vontade escudada nesta falta de à vontade, traz-me para o meio, para o teu meio, eu não vou sozinho. Saio sozinho sempre, é como eu faço, não tenhas pena, escala-me penha que eu sou plano apesar de rude. Quero, mas não tenho na língua a fome, é noutro lado, vira de lado e olha de frente, e se alguém comente que tu foste fácil, diz que quem o foi fui eu, e a culpa é minha. Sou uma parede daquelas rugosas, onde florescem as osgas e as plantas ingremes; dá. Eu não sei pedir.
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Tira
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Foge de mim que eu não tenho vontade de encontrar-te. Sem te ver, o cor-de-rosa do poente é só o cor-de-rosa do poente, e depois o sol põe-se e eu posso ir para casa sem caso, nem coisas, e acordar com a minha almofada agarrado como adormeci sem ti. Negar a inevitabilidade do adeus é mais difícil se não dissermos olá. Eu não sou o que tu queres, eu não sei o que tu queres, eu quero a minha almofada almofadada, redonda de curvas acessíveis. Tu és o rali de monte carlo no meio do frio da neve e do escorregar abismos. Eu sou a primeira estação da linha em que ninguém saí, e em que quase ninguém entra. Eu sou o extinto trem e a fogueira dos teus olhos não me derrete o gelo, porque estou longe e não sei o teu caminho.
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Interlúdio Trágico
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Déspota
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Déspota de mim caio em Bastilhas
O peito em estilhas a cabeça cortada
Às tiras
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Corre-me entre as orelhas
O som cozinhado das eras
E já não eras mesmo quando foste
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Sei de mim que a vontade de ir
É a de partir de mim
Abandonar-me de todo
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Sei que fugir é ilha
Porque já fugi em ilha
E encontrei-me de velho
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Não nunca fui novo
Todas as minhas descobertas
Nasceram dos meus olhos
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Não nunca quis nada
Que se adianta-se aos desejos
Que fosse prévio aos sonhos
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Alto coração pairas tão alto
Que mesmo sendo meu nada me dás
Desce volta atrás
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Quero o dia da mão vazia
Da nota solta
Da maré alta
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Fim D'Hoje
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Um dia, quando a soma dos anos me permitir uma visão mais clara, olharei para mim sem precisar de espelhos. Até lá, na inevitável sucessão dos dias, continuarei a olhar para a clareza dos outros. A vida é mesmo, mesmo bela, e nós somos umas esponjas tontas, que só precisamos de saber absorvê-la. E volta e meia espremer-mo-nos.
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Adenda
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Olhar nos olhos é impossível ao miúpe, pelo menos com exactidão; eu vou procurando fazer do fundo dos copos lentes, mas dá-me a impressão que não melhora muito. Mas há que ter esperança.
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Adenda 2
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Isto hoje não saiu lá muito bem mas, senhores, não percam a esperança, algum dia sairá. Até.